Quem ousa, ainda hoje, afirmar o valor de quaisquer ideais que transcendam os moldes da ideologia comum cedo deve acostumar-se com os dedos indicadores que apontam em sua direção – pra não mencionar os dedos em riste. A acusação mais comum, como se pode observar, é a da contradição entre os ideais defendidos e o comportamento praticado. Com efeito, sendo o defensor de ideais humanitários um herdeiro do cristão comum, do fiel que se submete à doutrina que lhe desfavorece completamente, e sendo os acusadores – esse “rebanho de Nietzsche” –, os herdeiros da instituição cristã, do Tribunal do Santo Ofício, torna-se tarefa fácil imputar nos primeiros o sentimento de culpa e o desejo de redimirem-se do pecado, concedendo a Deus – o “novo Deus” do conformismo, de que fala Horkheimer – o poder sobre sua vida.
Tais acusações são, em primeiro lugar, uma fuga. Refletem, além disso, uma total incompreensão acerca da natureza do pecado que se procura combater. Mas o que quero dizer quando chamo tais acusações de fuga? Afirmo simplesmente que, quem acusa o humanista de não praticar seu humanismo deixa esse humanismo completamente intocado. A acusação que eu faço agora de que os acusadores nada mais são do que fugitivos não pode certamente ser dirigida à totalidade dos acusadores. Se eu assim pensasse talvez me comportasse como os próprios acusadores de que falo aqui. Mas é uma prática comum essa fuga: se não se consegue combater um ideal, combate-se o defensor daquele ideal. O filme “Thanks for Smoking” demonstra bem isso. “Eu não preciso me dar ao trabalho de discutir se os ideais humanísticos têm ou não valor em si, porque seus próprios defensores não os praticam.” Bravo! Sua fuga foi bem sucedida!
Eu não posso, entretanto, me ater a esse ponto. Pra além do fato de essas acusações indicarem um temor de se enfrentar os ideais humanistas em si, elas sequer chegam a tocar os acusados! Quem se acostumou a ser rebanho da ideologia comum, segundo a qual fazemos muito mais pela humanidade ajudando a construir o que já foi construído – reforçando a existência do que já existe – do que se dedicando a metas utópicas, a mente acostumada a essa prisão – tão confortável quanto parecem à opinião comum as próprias penitenciárias, onde se tem cama, mesa e banho – não consegue perceber a riqueza da crítica do real. Pra essas cabecinhas bem “formadas” – enfatizo aqui toda a riqueza de significados lisonjeiros e depreciativos dessa palavra –, o indivíduo que critica a desigualdade deve necessariamente repartir o que é seu com quem não tem nada ou tem pouco. Isso é matemático. Como operação matemática, convém perfeitamente a essas mentes presas ao existente, que há muito sabem ler a linguagem matemática do livro que é o mundo. Se A possui 3 bicicletas e é defensor da igualdade, e B e C não possuem bicicleta, logo A deverá dar as 2 bicicletas aos demais, pra honra e glória do Senhor. No entanto, aparecem D e E alegando que também não possuem as tais bicicletas, e faz-se necessário então introduzir Salomão na equação – como licença matemática – pra realizar as devidas operações fracionárias. Parece ser assim a visão de igualdade que têm os depreciadores da igualdade. Afinal, a igualdade [=] é um sinal matemático, ou não?!
A mente realista – no sentido daquela que é presa ao real, ou melhor, presa “do real” – sequer se dá ao trabalho de analisar a natureza das propostas humanísticas. Mas não irei aqui me dar também ao trabalho de explicar essas propostas – talvez em comentários, ou talvez eu faça uma continuação pra essa postagem. Queria apenas lembrar um professor, socialista convicto, que possuía um padrão de vida bem acima do comum, o que atiçava o desejo de servir a Deus desses inquisidores comuns. Quando estes acusavam-no de contradizer seus ideais na prática, sendo um socialista “burguês” – e quem afirma isso sequer sabe o que caracteriza um burguês – o tal professor respondia categoricamente: “Quem gosta de miséria é o capitalismo!”.
REFLITAO