No curso de Filosofia, ao menos onde estudo, existe uma discussão recorrente: se a Filosofia deve permanecer como aquele “corpo hermético” ao qual apenas os iluminados têm acesso ou se ela deve descer ao mundo dos homens, fazer-se carne e habitar entre nós. É uma discussão bastante relativa, pois relativo é sempre o julgamento sobre se algo é demasiadamente complexo ou se é simples demais. Mas são esses os termos da discussão: a exposição do pensamento filosófico deve adequar-se à mentalidade daqueles que o buscam, tornando-se algo em certa medida simples e até prazeroso, ou esses desejosos do saber filosófico devem adequar-se à disciplina e ao nível de abstração que a Filosofia requer? É correto vulgarizar o pensamento filosófico?
Aqueles que defendem a vulgarização da Filosofia afirmam que essa mesma Filosofia é algo simples, que pode ser exemplificado ou até aplicado no dia-a-dia. Se a maior parte das produções filosóficas é inacessível ao grosso da população, isso não se deve a uma característica da própria Filosofia, mas aos filósofos, por não se preocuparem com – ou talvez evitarem – a divulga(riza)ção de seu pensamento, e tal inacessibilidade das idéias se dá por conta de seu estilo ou de uma opinião errônea quanto ao modo correto de se expor os argumentos. Caberia então ao professor de Filosofia corrigir essa falha e traduzir o pensamento dos autores em caracteres familiares aos estudantes de Filosofia.
Há, no entanto, uma oposição muito forte a essa ânsia de vulgarização, por parte de alguns professores e estudantes. E eu me incluo nessa linha de oposição. O que se costuma argumentar contra aquele ideal de simplificação é que o pensamento seria “empobrecido”, perder-se-ia a “riqueza” do pensamento filosófico. Isso explica muito pouco. Pior: isso dá uma nova conotação a esse embate. Gera-se uma aparência de confronto entre modelos de pensamento com fundo sociopolítico: uma disputa entre os ideais aristocráticos e os democráticos.
Obviamente que não apenas esse teor alimenta a discussão sobre a (não-)vulgarização da Filosofia, mas talvez essa aparência de confronto sociopolítico interfira na discussão, ainda que de maneira inconsciente. De fato, por mais aristocráticos que sejam nossos estudantes de Filosofia, quando são eles próprios os “oprimidos”, a moral dos chandala[1] se lhes apresenta como ideal.
Há, no entanto, mais elementos – acredito que bem mais importantes e decisivos – que impulsionam esse desejo de que os filósofos desçam do Olimpo. Em primeiro lugar, a observação provou que não existe Olimpo, e os deuses, refugiados de seu lar original, não conseguiram fugir à perseguição implacável da experimentação e do método científico: foram mandados pra fora desse mundo[2]. A Filosofia, então, não mais pode contar com o auxílio divino, e não há mais um Céu onde ela reina soberana: o céu foi dominado pela Astronomia, e cabe à Filosofia dominar outros espaços! Desculpem-me o excesso de poesia. Não devo esquecer que, por enquanto, a Filosofia deixou de ser um corpo hermético! O que quero dizer é apenas que um dos elementos que geram nas mentes o desejo de vulgarização da Filosofia é que ela deve ser tão demonstrável e até aplicável quanto a Ciência Moderna.
Mais um aspecto deve ser notado, e ele é tão importante quanto o anterior: o mundo tornou-se Belo! Não que o mundo fosse Feio. O mundo tornou-se Belo assim como o Sol tornou-se Sol: ele não é mais qualquer coisa senão o Sol! Não é mais um Deus, ou o que seja. Assim também o mundo. Todos ainda alimentam ilusões morais, cognitivas, mas nos comportamentos do dia-a-dia, uma só verdade impera: a verdade do Belo. E quão bela é a vulgarização! Ela atinge nosso mais íntimo e nos emociona. Ficamos emocionados, comovidos ao extremo, ao ver aquele Deus que morre na cruz por nossos pecados! Ficamos extasiados, como quando apreciamos aquele magnífico quadro chamado “Fim da Metafísica”. E não poderia ser diferente. Que espécie de amor se pode dedicar a figuras abstratas? A Filosofia, pra que a sintamos, deve habitar em nosso meio. Onde dois ou mais se reunirem em seu nome, ali ela deve se fazer presente!
São esses alguns aspectos – quase sempre inconscientes – que cercam a questão de que tratamos. Eles surgem do próprio nome daquilo que se discute: “vulgarização”. Tornar a Filosofia algo “vulgar”, algo pertencente ou acessível ao “vulgo”, ao “povo”. Mas que povo é esse? Por que a Filosofia deve tornar-se algo apropriado pelo povo? Por que a iniciativa da apropriação deve partir da Filosofia? Por que tal iniciativa deve vir no sentido que se propõe, da simplificação – tão extrema quanto seja necessário – de seu conteúdo?
O mundo se tornou obra de arte, e obras de arte são polissêmicas. A polissemia, por sua vez, tem efeitos positivos e negativos, dependendo sempre do espírito do seu observador. Com efeito, ela pode conduzir à multiplicidade de sentidos, é essa sua natureza. Mas ela pode ser heteronomizada: o espírito unilateral irá conduzir o objeto polissêmico ao seu vetor próprio, como sentido único. Assim se dá com o ideal de democracia. De fato, a democracia tem sido tomada como vulgarização. A ascensão do povo ao posto de sujeito livre da História parece exigir que todas as realidades mais superiores desçam ao nível em que se encontra a humanidade. Deus deve tornar-se homem, em vez de os homens se tornarem deuses. A perspectiva pode ser a de que o Messias redimirá os homens e lhes levará ao caminho da salvação, pelo qual unicamente cada homem poderá ser Um com o Pai. Assim, a Filosofia, simplificada, vulgarizada, torna-se instrumento da luta dos homens, podendo erguê-los ao Olimpo, onde então a Filosofia, com toda a sua riqueza, não será mais um corpo hermético.
Isso é muito lindo. O leitor deve ter ido às lágrimas com esse relato bíblico. Mas ele é real? Ou não seria mais uma invenção dos “primeiros cristãos”? Quando digo “real”, não o digo no sentido do fato, daquilo que se apresenta como realidade efetiva, material, posta diante dos nossos olhos. O real positivista me enoja! O que eu pergunto é: as coisas podem se dar dessa forma? Será que o povo, pra se tornar sujeito livre da História lançando mão da Filosofia, não precisaria já ter se tornado um sujeito da História?
Aquele que entende democratização como vulgarização talvez não perceba que, à medida que se desce o Monte Olimpo, mudam os ares, nada é o mesmo. O desejo psicótico de simplificar a Filosofia, o paradigma da ameba, não percebe que a simplificação não é simples tradução. Ele não percebe o próprio sentido do instrumento, da instrumentalidade. (Talvez seja preciso assistir MacGyver e inteirar-se desse sentido. De preferência, que se assista em rotação invertida.)
Quando um Deus passa a conviver entre os homens, ele não permanece inalterado. Perde-se algo. Perde-se muito. Perde-se, talvez, o essencial. O real é que um Deus que se faz carne pode realmente acabar na cruz!
Rush - Tom Sawyer [Música de abertura da série "Profissão Perigo" ou "MacGyver".]
* A expressão não é minha. Foi usada pelo professor Expedito Passos em uma aula de que participei, e eu tô utilizando livremente.
[1] Na visão de Nietzsche, a democracia e a moral cristã seriam uma “moral de escravos”. O termo chandala designa a classe mais baixa da sociedade indiana, portanto os escravos, e é correntemente usado por Nietzsche em seu O Anticristo.
[2] Em certa medida, pra algumas pessoas, eles o foram literalmente, como se pode ver em documentos como o livro Eram os Deuses astronautas?
2 comentários:
Bem, a filosofia para todos me parece algo positivo, revolucionário.
Quantas mudanças não aconteceriam, em 100 anos os homens evoluiriam 1000.
Essa afirmação acima, com certeza não passa de um discurso apaixonado, pois, não há qualquer razão para supor que a filosofia mudaria as coisas para melhor, talvez seria o contrário, afinal a falta de resposta que a filosofia traz consigo deixaria os homens angustiados, iríamos parar no tempo !
Parar no tempo talvez fosse melhor do que acelerar em direção à destruição da humanidade, como o que temos presenciado na História recente...
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